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POEMAS E RECADOS

poemas e textos editados e inéditos de JOÃO LUÍS DIAS

POEMAS E RECADOS

poemas e textos editados e inéditos de JOÃO LUÍS DIAS

OUTRO DIA DIREI MELHOR

 

Queria escrever um texto fantástico, onde nele desenvolvesse uma ideia genial e aí soltasse todas as melhores palavras e com elas prendesse à leitura até o mais desprendido destas coisas da escrita. Queria escrever algo mesmo fantástico, repito.
Bem, mas não o conseguirei, claro. Que raio de mania tenho de me iludir com feitos inatingíveis. Que apetência tenho para me deixar perder em delírios do espírito, emoldurados de ambição desmedida.
Desta vez queria escrever algo à maneira e obrigam-me os olhos a fixar-me em seis colunas de cimento armado, que sustentam um edifício com algumas janelas e sem varandas.
Mas como poderei escrever alguma coisa que valha, se, para além das colunas e das paredes do edifício que aquelas suportam, só um passadiço frio tenho para procurar motivos para desenvolver num texto e nele alinhar as maiores palavras e as mais ricas figuras de estilo literário?
Hoje, quando queria escrever o melhor recorte de palavras de sempre, tenho apenas para motivo de inspiração meia dúzia de colunas a suportar um edifício sem varandas e um passadiço, por onde se passa e cospe no chão.
Pregada na parede do edifício, fixado pelas colunas que, com o adiantado destas, formam uma espécie de arcada, existe uma caixa de levantamento automático – multibanco – onde, à míngua, se vai colhendo da parede o magro salário e reforma, a quem nem tempo lhes dão para poisarem, para algum temperamento, em depósito. E vão rindo os bolsos e vão gemendo os juros e vão parando no passadiço, em frente à caixa aprisionada na parede do edifício com janelas mas sem varandas, aqueles que aos pouquinhos vão sacrificando o pé-de-meia, que um dia quiseram fazer crescer, acomodado e guardado na caixa-forte da sua legítima ambição, fruto do amargo trabalho de sol a sol de tantos dias.
Queria escrever uma texto ou uma crónica maior e obrigam-me os olhos a colher inspiração em seis colunas, num edifício, numa arcada, num passadiço, numa caixa de levantamento automático, crucificada numa parede, onde se levanta à míngua dinheiro e se cospe no chão, enquanto se espera, como que por uma esmola da parede.
Queria escrever algo maior, soberbo, mas não é fácil, se aos meus olhos me prendo e eles me oferecem pouco.
Queria escrever hoje algo bem escrito, mas parece melhor esperar por melhores dias…
 
 

VIVAM!

 

Vivam os letrados, os menos formados e os analfabetos. Mas estes estão ainda a tempo de aprender, se quiserem e os ensinarem.
Vivam os heterossexuais, os homossexuais e vivam também os que não são “carne nem peixe”.
Vivam as mulheres e os homens, as crianças e os idosos. E, já agora, vivam também os “filhos da mãe”. Mas estes que vivam menos.
Vivam os dentistas, os trapezistas, os músicos, os agricultores. Mas estes que se deixem de procurar mulher para casar em programas de televisão, que se sujeitam a levar para casa uns tamancos, convencidos que ganharam uns sapatos novos de estilo requintado.
Vivam os gratos, os gatos, os cavalos de puro sangue e os outros também. Mas os ingratos que vivam longe, pois nem os animais os querem por perto.
Vivam as vendedoras de flores, os condutores de tratores, os gigantes e os anões, mas vivam muito pouquinho os aldrabões.
Vivam os criadores, os sonhadores, os pintores e os comedores. Mas estes que vivam afastados, para deixarem os outros comerem também.
Vivam os palhaços, os poetas, os honestos e os trapaceiros. Mas estes que vão viver “p'ro caralho”. Sim, para esse lugar, bem lá no alto do mastro do navio, para levarem com o vento nas trombas.
Viva eu, que também mereço e viva o meu vizinho, que é boa pessoa.
Vivam todos, mas uns mais perto de nós do que outros.

 

 

SAUDADE E EU

 

(Para canção)

Folhas ao vento

Podem ter que voltar

Vou querer parar o tempo

Já aprendi a te esperar

 

Rego a vontade

Cá dentro do meu peito

Colho flores ao fim da tarde

Dum jardim feito ao meu jeito

 

Guardo o perfume

Que um dia me deixaste

Nos olhos acendo o lume

Deito o sono onde sonhaste

 

Invento a noite

Linda, sempre a brilhar

Caso a vontade e a sorte

Vejo-te à noite ao luar

 

Tenho a estrada

Um chão só meu

Saudade e eu…

 

Adio o beijo p´ra ti

Solta o olhar e sorri

Dentro do peito tenho a pulsar

Razão maior p´ra te abraçar

 

FINADOS

 

Se em novembro, pelos finados,
de céu cinzento e chuva certa,
colheres flores viçosas do chão,
é sinal que o sol brilhou
e nem sempre se escondeu,
que o melhor da primavera ficou...
que a lembrança não morreu
e que a vida não foi em vão.

 

CEIA

 

Encolheu os ombros,
suspendeu os braços
e deixou o sangue arrefecer
nas pontas dos dedos.
O céu acinzentou-se,
fez-se baço o horizonte
e o crepúsculo apagou
todas as linhas da mira dos olhos.
Fez-se noite prematura
de estrelas ainda apagadas.
A lua abortou acocorada e fria.
A noite gelou no escuro
e o gato, num rompante,
mergulhou no aquário
e surpreendeu
o último peixe azul.

 

OUTUBRO

 

Das tílias caem as folhas secas
deformadas e sem cheiro.
O sol, ao entardecer,
já não sai aceso como saía,
por entre os ramos dos plátanos.
É outubro, prenúncio do frio,
do céu cinzento e tímida cor,
na eminência das chuvas.
O inverno já se estende ao testemunho

para continuar a estafeta.
E outros pássaros virão,
saudosos do aconchego dos ninhos

que resistiram...

 

INTENSAMENTE

 

Quero-te devagar
com mãos de seda
toque de embalar
boca de amêndoa
lábios de sede
e beber-te e saborear-te
sem tempo e sem reservas…
Depois, em sofreguidão
no acender dos olhos
no transpirar das mãos
no desespero do corpo
ao desnorte do desejo
quero amar-te
intensamente
até ao verter das fontes

 

 

VENTO

 

Não sei que vento me sopra

mas sinto o vento a soprar...

 

Se é vento norte, não sei

Sei que é vento, é vento forte

Vejo as folhas, tantas folhas

em rodopio agitar...

 

Não sei que vento me sopra

mas sinto o vento a soprar...

 

E as flores humedecidas

de perfume, ao sol raiar

gemem ao vento que sopra

ao mesmo vento que sinto

no meu peito a fustigar…

 

Não sei que vento me sopra

mas sinto o vento a soprar...

 

 

QUIETO

 

Olhei, quieto nos teus olhos

grávidos de aromas e candura
um ventre em flor a abrir na primavera.
Entontecido, porque embriagado
no campo limado e morno do entardecer
falei-te e disse quase nada
por não saber dizer mais do teu olhar.
E volta de ti um poema
um poema maior
declamado em sussurro
que me trespassa pelo peito
como flecha acesa de licor e lume
tombando-me ao crepúsculo dos teus olhos
no salpicar imenso das palavras.
E fico internado na metáfora enorme
que teceste lá dentro...

 

 

EXISTE

 

Existe um lugar
lá dentro
onde nos queremos eternos…
Existe um lugar 
lá dentro
onde as cinzas permanecem.
Existe um lugar 
lá dentro
onde somos para além dos gestos
do toque, do sol, da chuva, do vento
do cheiro das flores
do arco-íris, do sono.
Existe um lugar
lá dentro
bem no fundo, íntimo
onde existimos muito
e revelamos pouco.

 

 

ÍNTIMO

 

Quebrei no teu peito
um glaciar de silêncio.
Poisei-me na noite
e fiquei no teu colo
à espera, a querer saber de mim...
Falei-te intimamente
soletrando cada palavra 
rasgada à garganta
de coisas minhas, sérias
enormidades do coração.
Falei-te de tantas coisas 
que nunca ousara...
Abri o livro na página que interrompera
quando um dia, ao fechar dos olhos
acomodado num peito morno
me deixei adormecer...

 

 

 

APETECE-ME

 

Apetece-me
um lírio agreste
uma pedra da montanha
uma praia
um braço de mar
uma caravela
um vento a bombordo
um navio
a espuma branca
de uma onda inquieta.
Apetece-me
o sal, o sol, o luar
um perfume doce
salpicado no peito.
Apetece-me
o acordeão
no gemer sustenido dum acorde.
Apetece-me
o beijo dos pombos no chão da cidade
e olhar a árvore verde
que se agita na rua cinzenta.
Apetece-me
sei lá...
saber de Paris
do sul, do nascente
do polo norte,
do frio e do nevoeiro.
Apetece-me
saber de mim
e saber dos lugares que não sei.
Apetece-me…
tudo que me leve
às margens do sentir.

 

 

COVID-19. Respeito, sim!

 

EXEMPLO/TESTEMUNHO de sucesso na cura, que trago aqui.

 

Chama-se Rúben e pertence às forças de segurança nacionais – GNR.

O Rúben foi infectado com o Covid-19. Recolheu-se, resguardou-se, protegendo quem o rodeia. Curou-se. O vírus, para ele, já era. Preferiu a coragem, ao medo.

O Rúben, além de jovem, padeceu no passado recente de cancro na bexiga. Está curado dele.

O Rúben fez e faz hemodiálise. Aguarda o transplante dum rim. Durante o tempo da sua infecção/doença fez semanalmente tratamento hospitalar. “Não poderia deixar de o fazer, pois morreria ao fim duma semana, se não renovasse o sangue”, disse-me.

O Rúben é um guerreiro e um exemplo que nos deve dar alento. E falou-me, com lucidez, do processo de doença, dos sintomas e do quanto o ânimo é importante nesse período. E disse-o melhor do que mil cientistas, ou “profetas”.

O Rúben sabe, como todos deveremos saber, que o Covid-19 pode ser fatal para os mais frágeis, pelo que os devemos e nos deveremos sempre proteger.

O Rúben permitiu-me falar do seu caso e posou em foto, com este belíssimo aspecto.

 

20200519_140507.jpg

 

A CASA DA RUA

 

 
Boa noite, noite!
Debruçado aqui à janela
ouço um silêncio estranho.
Nunca o ouvi assim tão estranho!
Olho a rua vazia.
Já na última noite
e a meio da tarde, também,
estava assim vazia.
Será que a rua arrendou
ou comprou casa,
para deixar de viver e dormir ao relento?
Será que a rua se aprisionou numa casa
com medo do frio e do silêncio,
ou se internou para não morrer de solidão?