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POEMAS E RECADOS

poemas e textos editados e inéditos de JOÃO LUÍS DIAS

POEMAS E RECADOS

poemas e textos editados e inéditos de JOÃO LUÍS DIAS

O meu som de momento

 

 

Prefácio/dedicatória assinado por PEDRO BARROSO (autor/cantor/compositor), no livro "Um Poema, Uma Flor" de João Luís Dias.

 

O POETA SÓ

 

O poeta estava só. Era o último homem do sentir e do saber, porque os cinzentos tinham invadido a cripta do conhecimento e haviam selado a porta.

O poeta fugira e habitava então os montes mais altos que havia no lugar.

E ficava cogitando, lá, no sítio onde, a génio, dormia em camas de morrinha e pasto tenro.

Lavava-se com orvalho gotejado das manhãs, enquanto, obrigado pela vida, trabalhava num espaço fechado, onde se vingava sonhando o Céu e a Lua o dia inteiro.

Era difícil ser poeta por ali, na pátria velha onde os outros todos já tinham perdido a alma.

Mas ele vivia o lado de dentro do arco-íris. Vivia para o sonho e a paz.

Vivia para criar beleza nas palavras e nos sons, musicar a fala. Amar o amor. Saber.

Vivia por dentro do acto difícil do sentir. E sobrevoava o teatro imenso da Natureza toda, fascinado. Coisas da solidão, difíceis de explicar.

Insistir no discurso era árduo. Era como uma enxada cavando em granito, fealdade e frieza. Isolado nos montes… todos os dias, era difícil.

Então foi buscar poetas aos montes e prados vizinhos. Juntaram-se e beberam o hidromel das vestais e dos deuses. Juntos, tornaram-se revolta.

E  do cinzento nasceu a paixão do impossível. Descobriram a cor. Tornaram-se lenda e imagem. Mais fortes os laços, mais montanha nos dedos, mais amizade nas veias.

E assim aprenderam a dar as mãos e a sentir mais, nas águas cálidas e límpidas da fonte da inteligência.

E prometeram para sempre, por cada poema, uma flor.

Aos olhos de uma mulher absoluta, nascida da bruma e do arrepio.

Juraram pela mulher ideal. A que vive em cada sonho de poeta, em cada amor amargo e doce como a vida.

E assim nasceram para um amor florido e puro. Como o cristal imenso de um olhar meigo quando nos diz: quero-te.

E a montanha fez-se de todas as cores, em flores e fantasia. E a comida do sonho tornou-se o néctar da eternidade.

E só viver esse sonho de palavras e beleza vale a pena. Dizem os eternos sonhadores.

Os tais que afinal, são eles, e apenas eles, os construtores do futuro.

E pagam cada poema com uma flor. E vivem na cripta solene da eternidade e do sentir.

 

Tarde, ou não

Desta tarde pouco mais resta
que a luz baça a mostrar seminu o horizonte
Desta tarde, já quase tarde demais para ser ainda tarde
só o morno banco de pedra no jardim
aceso no esplendor da tarde me acolhe
enquanto espero esta tarde cair completamente
Mas nunca é tarde, eu sei
para saber o que tarda em mim
Nunca é tarde, eu sei
para saber por que se esconde cá dentro um sorriso entardecido
Não é tarde, eu sei que não é tarde
para não querer deixar-me entardecer…
Eu sei, nunca é tarde
mesmo que tarde
para não querer uma tarde que tarde tanto em mim
Eu sei que não é tarde!
Nunca será

 

Inédito

  

Tom menor

Hoje não trago rosas vermelhas

só um corpo amorfo, um ventre abafado

uma fera ensonada

um poema sem rima ou brilho

 

Hoje não transporto flor alguma

só um beijo insípido, um abraço brando

um sorriso morno, um olhar descolorido

uma voz sem timbre

 

Hoje nem uma folha carcomida me adorna

só um pranto morno, um soluçar mudo

um par de lágrimas em cristal gélido

uma balada sem verso e sem calma

uma noite inútil

 

Hoje, mesmo assim

venho a ti porque acredito…

só ocupo as mãos com as tuas

só os teus lábios me elevam!

 

in "Sonho em Hora de Ponta"

 

Liberdade

Quero que tudo flutue…

o pó, as pedras
as folhas secas do chão.
Quero que tudo flutue…
o corpo inerte que dorme
as cinzas que já não ardem
os cristais frios de Inverno
que o Céu teima em soltar.
Quero que tudo flutue…
o anseio dos que esperam
o sorriso dos que conquistam
a ilusão dos que inventam
a emoção dos que repartem.
Quero que tudo flutue…
mesmo que o ar rarefeito
me sufoque e me entonteça
mesmo que o vento tudo desfaça!
Quero que tudo flutue…
para poder olhar…
e ficar, assim, uns instantes
prendido à minha liberdade!...
 
in "Antes que o Tinteiro Entorne"

Afectos

Podem faltar-me candelabros
cristais azuis
jardins faraónicos
ou menores jardins de praça de cidade
multicoloridos ao anoitecer...
Mas uma flor
com perfume
colhida bem cá de dentro
nunca me faltará para uma mulher
porque lhe é devida

 

inédito

 

Um poema enorme

Queria escrever um poema enorme
nem que fosse o poema enorme
mais pequenino do mundo
Queria escrever um poema enorme
nem que fosse o poema enorme
mais simples do mundo
Queria escrever um poema enorme
nem que fosse dos poemas enormes
o menos enorme de todos
mas que fosse enorme para ti
porque para ti
enorme...
só um poema maior!

 

inédito

 

Entardecer

Olhei, quieto nos teus olhos
grávidos de aroma e candura
um ventre em flor a abrir na Primavera
Entontecido
porque embriagado
no campo limado e morno do entardecer
falei-te e disse quase nada
por não saber dizer mais do teu olhar
E volta de ti um poema
um poema maior
declamado em sussurro
que me trespassa pelo peito
como flecha acesa de licor e lume
tombando-me ao crepúsculo dos teus olhos
no salpicar imenso das palavras
E fico internado na metáfora enorme
que teceste lá dentro!
 

inédito

Viagem

Abram-me as portas da rua
cubram de asfalto a estrada
quero um chão onde poisar
vou com pressa atrás da Lua
não poderei tropeçar

Estou com pressa, sem tempo
tenho hora para chegar

Lembrem-me a cesta de vime e uma faca afiada
vou invadir os jardins...
soltar flores na caminhada
Acordem-me na madrugada
não esperem o galo cantar

Estou com pressa, sem tempo
Tenho hora para chegar

Tenho pressa
abram-me as portas da rua...
estou de tempo marcado
para ir a nenhum lado!
 

in "Um Poema, Uma Flor"

Delírio

Solta-me por ti
agora
que o fogo me cercou
e as chamas me colheram.
Deixa-me arder
contigo
ateados de desejo...
Então
perdido de mim
refém só do teu corpo
sufocado
e entontecido
destilarei
no bálsamo perfumado
do teu ventre!
 

in "Um Poema, Uma Flor"

Sei de ti

Sei de ti, o olhar...
Sei de ti, o sorriso que trazes lavado nos olhos
a brisa que te sopra nos cabelos
quando soltos pela manhã
Sei de ti, que sonhas e inventas o mar...
a cor que pintas cada grão de areia
como enterneces cada onda que, de revolta
se acalma em espuma temperada de sal
Sei de ti, as flores que te perfumam
de cada pétala que depositas no peito
e te embriagam de primavera!
Sei ti, o coração
da enormidade de afectos que dele transborda
e da vontade de partilhar
toda a nobreza que detém lá dentro!
Sei de ti, as mãos talhadas de prata em renda
os lábios rasgados a cinzel e fogo
e o beijo em lava que querem verter
Sei de ti, a chama acesa que te arde no ventre!
Sei de ti...
Sei de ti, que existes
e isso é já saber
tudo que quero te ti!
 

in "Um Poema, Uma Flor"

Retrato

Olhar-te
é querer-te a meu lado
quando castigado pelo calor
numa tarde envaidecida ao sol
e beber do fio de água temperada
que serpenteia em teu peito.
Olhar-te
é ter-te perto de mim
lavar-me em teu sorriso
contorcer-me no recorte
das infindáveis belezas
que emprestas aos meus olhos
e ficar, assim
seguro nas tuas mãos
e solto pelo teu coração...
Olhar-te
é poder sentir-te
inventar-te
e ficar contigo
para lá
do meu último horizonte!...
 

in "Um Poema, Uma Flor"

Intimidade

Quebrei no teu peito
um glaciar de silêncio
Poisei-me na noite
e fiquei

no teu colo
à espera
a querer saber de mim
Falei-te intimamente
soletrando cada palavra
rasgada à garganta
de coisas minhas
sérias
enormidades do coração!
Falei-te de tantas coisas
que nunca ousara
Abri o livro na página que interrompera
quando um dia
ao fechar dos olhos
acomodado num peito morno
me deixei adormecer...

 

in "Um Poema, Uma Flor"