A PROPÓSITO DE EQUIDADE, TRABALHADORES E OUTROS MALFEITORES
Como funcionário público (e peço desculpa por pertencer a esta espécime de malfeitores) desde sempre me habituei a trabalhar muito para além do tempo que me é obrigado, e sempre o fiz e faço a troco, apenas, do gosto de bem-fazer e nada mais. E não sou, acredito, o único “malfeitor” com esse gosto curioso, quiçá, esquisito, ou mesmo anedótico, de dar mais do que aquilo que me pedem; precisaria de muitas mãos e muitos dedos para os contar a todos. E se o que acabo de dizer é fazer justiça a quem a merece, está feita então por mim aqui.
Mas, se “malfeitores” o continuarmos a ser, que o sejamos até no excesso do horário de trabalho. De benfeitores está o inferno cheio e o paraíso e o céu fartos deles. E não digo mais, para não dizer demais... Claro, atento à tão falada equidade (público/privado) apenas dela direi que melhor será nem dizer nada!
Já algum vez abraçaram uma árvore ou afagaram uma pedra áspera? Já alguma vez sentiram que num abraço ou num afago, metade da sensação é nossa? Já testaram isso? Já sentiram esse conforto?!
Fui hoje a uma consulta de oftalmologia. O médico, que pela primeira vez me consultava, aparentava ter pouco mais de 60 anos. Sempre compenetrado e sério, observou-me os olhos e depois, já sentado na secretária, comigo em frente, prescrevia a ordem para feitura das lentes. Enquanto isso, fui-lhe perguntando:
- Então, sr. doutor, que graduação necessito? - Dois e meio – respondeu. - Um pouco elevada! – observei. - Nem por isso, para quem tens quase 80 anos! – afirmou, com naturalidade e sem fazer parecer qualquer anormalidade no diagnóstico. Surpreendido, certo que só uma ironia justificaria a sua afirmação em relação à minha idade, com a mesma serenidade e firmeza, respondi-lhe: - Sim, claro, nada de anormal. O doutor, com quase 100 anos, ainda consulta, e não lhe vejo fundo de garrafas a servirem-lhe de lentes. Levantou a cabeça, franziu o sobrolho, olhou-lhe… e continuou a prescrição. Finalizada a consulta, despedimo-nos, saí e ele ficou. E eu vim com a certeza de que ele não repetirá a “graça”, se graça não demonstrou ter; pelo menos que os seus olhos a fizessem transparecer…
(Agora, num aparte, pergunto a quem me conhece: caramba, será que aparento ter mais de 70 anos?!)