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POEMAS E RECADOS

poemas e textos editados e inéditos de JOÃO LUÍS DIAS

POEMAS E RECADOS

poemas e textos editados e inéditos de JOÃO LUÍS DIAS

OUTONO

Volta...

 

As folhas pousam, se o vento é brando
tapeteando os caminhos.
O sol é intruso, se espreita pela manhã...
e o chão não queima à meia tarde.
O dia e a noite começam cedo
e a chuva cai, arrefecendo sem gelar.
Vão-se os pássaros
ficam os ninhos franqueados ao silêncio.
No outono...
se de brio se quer estação
o ar arrefece
e ao pó não se deve o cinzento dos dias.
No outono
quando o vento chega
varre o chão, penteia a floresta
e obriga o inverno a esperar
permitindo aos rios
descer ainda sem sobressaltos.

 

 

CRIANÇAS. E SE TIVESSEMOS CUIDADO!

Perguntei ao João, de seis anos de idade, se me sugeria um tema para sobre ele escrever numa crónica. Adverti-o de que quando se escreve publicamente teremos de ir ao encontro do gosto de pessoas diferentes e de que teremos de falar de algo que as prenda, de forma a não pararem a leitura ao primeiro parágrafo. O miúdo respondeu-me que eu deveria escrever sobre a dificuldade que por vezes se sente em encontrar um tema para escrever. Fiquei surpreso pela secura da sugestão, confesso!
Naquele momento não atingi a dimensão daquela sua evasiva. Aligeirou dizendo que sentia que naquele momento eu estava sem inspiração e que o estava a colocar numa situação difícil, pois também ele estava sem grandes ideias. Confessou-me estar um pouco baralhado, tantos eram os assuntos que poderiam ser falados. Contudo, não sabia o assunto que mais importância tinha para mim, para os leitores do jornal, e que nem estava muito preocupado com isso, até porque à pergunta que me tinha feito ao final daquela tarde, e que gostaria de obter uma resposta, sobre como nasciam as crianças no meu tempo, quando as mães não iam para o hospital para as terem, e se em casa usavam uma faquinha afiada para lhes abrir a barriga, eu lhe tinha respondido que não era assunto para ser falado naquele momento, porque ele era muito pequenino para entender certas coisas.
Compreendi a sua falta de interesse em me auxiliar na procura do tema para escrever e que dele me tinha socorrido para o encontrar; como que uma represália dele.
Agora, que o João foi dormir e já que com ele não posso contar para me sugerir o que quer que seja sobre o que possa escrever, lembro a última consulta a que o levei ao Dr. João, seu médico de família. Na altura queixava-se de dores de barriga e, porque tinha sido operado ao apêndice recentemente, o médico, na palpação, perguntava-lhe se lhe doía com a mesma intensidade à dor que sentiu no dia antes de ser operado. Ao que ele respondeu: “Os sintomas são completamente diferentes; esta dor nada tem que ver com a outra, até porque agora está centrada na barriga e não de lado; não se me prendem as pernas e, parece-me, não tenho febre”. O Dr. João olhou-me estupefacto, abriu a boca de espanto e respondeu: “Bem, com um diagnóstico assim, posso ir almoçar descansado”.
Se, ao final da tarde, quando meio embaraçado não respondi ao João, tenho lembrado a sua última consulta, acreditem que lhe tinha dito que quando se nasce – como eu nasci – assim como uma grande parte das crianças da minha idade, nem sempre é necessário cortar a barriga da mãe, porque saímos livremente por um orifício do seu corpo chamado vagina.
Por que será que tantas vezes somos patéticos quando as crianças nos fazem perguntas sérias?!

 

AS BODAS E OS CONVIDADOS

 

Por média, entre os meses de Julho e Setembro, sabia que teria de gramar com quatro ou cinco casórios. Primeiro o do primo, depois o do vizinho, logo a seguir o do filho do compadre, e mais lá para o fim do verão o do afilhado do tio da mulher que vem do estrangeiro para fazer a boda por cá. Era assim todos os anos, e até já se tinha acostumo a esta correria de bodas.
Confessou-me, este amigo, que nunca tivera coragem para dizer não a um convite de casamento. Compreendo o quão difícil é negar a presença num tal convívio; num tão nobre e singular momento. Mas eu não me queria na pele dele. Poça, logo eu que detesto comer tarde. Pior ainda, se tiver de esperar um tempo infindo pelas fotos de todos os convidados de braço dado aos noivos, encostados à tília do adro da igreja. E, como se não bastasse, ter de gramar uma chinfrinada de talheres a bater nos pratos para pedir beijos: agora p´rós noivos, depois p´rós padrinhos, p´rós tios, p´rós primos, p´rós cunhados que vão casar no próximo verão, p´rás moças e moços casadoiros, p´rá convidada secreta de mamas grandes c´um qualquer convidado solteiro mais afoito. Enfim, uma beijoquice de bocas untadas de pudim, a arrotar a vinho espumoso, e entre a palitada de dentes, para remover o entalado farfalho de bacalhau resistente.
Que sejam muito felizes os pombinhos. Até poderei fazer por eles uma oração, para que Deus os abençoe e lhes dê muitos meninos, mas poupem-me o testemunho do enlace e principalmente a comezaina e algazarra que se segue.
É duro - pode pensar-se - este repúdio à presença num casamento. Pode até ser deselegante ou grosseira a forma de justificar o não querer gostar do convite. Mas depois de ouvir o lamento de alguém que ao longo de tantos anos se sujeitou, calado e amargurado, a linhar nestas “romarias”, não é motivo para menos! O homem soube bem justificar-se o seu calvário: compra um fato por temporada casamenteira; umas três ou quatro gravatas, para dar ar de nova graça ao fato que, inevitavelmente, tem de repetir na indumentária; gasta uma pipa de massa para presentear os noivos e ainda tem de comer bacalhau durante grande parte dos domingos de verão. E isto já não falando na impossibilidade de poder dar uma fugida à praia, para apanhar um pouco de sol, ou visitar um velho amigo que já há muito tempo que não vê. Tudo isto porque o homem está condenado a ir a tudo quanto é casório lá na terra e arredores e a ocupar os fins de semana de verão.
Enquanto este amigo continuar, contrariado, a engrossar as listas de convidados, e não tiver coragem para declinar o convite, irão continuar, com a presença dele, os carnavais de verão e o bom negócio que poderá ser uma festa de casamento.
Eu também não aprecio, quer o oportunismo, quer a longa fila de carros a buzinar com uma fita de renda na antena do automóvel. Mas, se assim continuar a ser, que se divirtam e sejam felizes!

 

OBRA DO PENICO

 

(não ficcionado)

 

Aconteceu já lá vão uns anos. Era eu então um dos elementos do comando dos Bombeiros Voluntários de Terras de Bouro. Tinha acabado de tirar o curso de comandante na Escola Superior de Bombeiros, em Sintra. Passava, por isso, e deter maiores conhecimentos teóricos e práticos, exigidos a um quadro especial de bombeiros e com responsabilidades acrescidas.
Quero lembrar, antes de iniciar o relato, que aquela corporação, por ser ainda muito jovem e por isso muito carente de meios de combate a incêndios, pouco mais tinha que dois carros equipados rudimentarmente e um pequenino espaço cedido pele município como aquartelamento. Apenas os jovens voluntários tinham valia e espírito de entrega e sacrifício e o seu comando formação para os nortear.
Hoje a realidade é completamente diferente; é uma corporação grande e com meios, como todas.
Voltando à minha memória, o caso bizarro que me proponho contar foi o seguinte:
Num domingo tórrido de verão, alguém informa os Bombeiros dum incêndio a deflagrar numa mata lá para os lados de São Bento e que perto dele uma casa de habitação, temporariamente desabitada, estaria ameaçada pelo fogo. Rapidamente me desloquei no velhinho Jipe, com a caixa de velocidades a arranhar como uma porta dum decrépito moinho, já que a outra viatura, em melhores condições, tinha sido deslocada para um outro incêndio na Serra do Gerês. Comigo iam mais dois voluntários.
Chegados perto do local, verificamos que era impossível avançar com a viatura, até porque um pequeno riacho nos separava do incêndio. Em fracção de segundos e no tempo que corríamos para o “palco de operações”, tentei assimilar tudo aquilo que aprendera na formação em Sintra, mas cada vez mais me frustrava, já que apenas segurava na mão um malho de lona e já chamuscado pelo uso. Poucos instantes depois, no local, verificamos que o fogo atingira já o cume da casa e dali até à casa ficar completamente em chamas seria apenas uma questão de pouquíssimo tempo. Já quase em desespero, olhei para todos os lados à procura não sei bem de quê, mas a verdade é que ao fundo do quintal existia um tanque com água. Mas como fazer uso dela?!... Ao rondar a casa, acabei por encontrar aquilo que poderia ajudar a aproveitar o valioso recurso ali perto: um velho penico de plástico, de cor azul clara que, como bênção, se encontrava pendurado junto a uma porta lateral.
Sem qualquer demora, pendurei-me na parede, e à medida que um voluntário me trazia o penico com água, colhida no tanque, ia-o despejando sobre a madeira já em chamas. Depois de muita água lançada, acabamos por eliminar o fogo e salvar a casa.
Foi quase anedótico, mas o que não seria sem o penico?!

 

LUAS

 

- Sabes?, eu chamo-me Lua como tu e acho que sou um pouco parecida contigo e gosto do mesmo que tu gostas…
- E tens razão, ambas somos apreciadas por muitas pessoas e gostamos de conversar. Mas tu és mais bonita. Tens uns olhos lindos, uma voz doce e pareces ser uma menina muito inteligente. Tens ar disso!
- Ah, obrigado, mas tu, para além de seres também muito bonita, irradias uma luz que ilumina o céu, tornando visíveis todas as estrelas. Dá até para contá-las todas. Eu não tenho essa luz que tu tens.
- A tua luz pode não mostrar todas as estrelas, mas acende os corações das pessoas, de tanta ternura que te sai do olhar. E isso é luz maravilhosa também!
Debruçada na janela, a menina mantinha conversa com a Lua, numa noite linda de luar, com milhões de estrelas a assistir do céu. E continuaram…
-Sabes?, quando eu for grande quero ser cantora e cantarei para ti e para as estrelas, daqui deste lugar.
-Que bom! Quer eu, quer as estrelas, vamos adorar ouvir-te cantar. Não duvido que irás ser uma belíssima cantora e encantarás quem te ouvir.
-Eu até já canto alguma coisa, mas só o faço em casa perante os meus pais. Ainda é cedo para cantar para ti, para as estrelas e para as pessoas ouvir, ficaria incomodada e mesmo um pouquinho envergonhada.
-Pois, vejo que és uma perfeccionista e por isso só cantarás para todos quando estiveres completamente segura de que o farás muito bem. Isso é prudência e a prudência também é sinónimo de inteligência. Mas, mesmo assim, nunca deixes a prudência dominar completamente a tua coragem e determinação.
-Sim, deve ser por isso que ainda não comecei a cantar, a não ser em casa para os pais. Mas também não vou esperar muito mais tempo, afinal sempre fui corajosa e determinada; quando quero uma coisa, procuro-a e tudo faço até a conseguir encontrar. Sou assim desde muito pequenina. Um dia perdi a chupeta e não descansei enquanto não a encontrei. Depois de a ter na mão resolvi não mais a usar, pois estava a deixa-me os dentinhos tortos. Mas tinha que a encontrar, para a guardar como recordação e não ser vencida pelo desânimo.
-Estou fascinada a ouvir-te, Lua. És mesmo uma menina muito especial! Mas diz-me, voltando ao início da nossa conversa: por que achas que és parecida comigo e do que gostas que eu gosto igual?!
-Ah, estás um pouquinha distraída, Lua! Não vês que ambas temos a cara um pouco redondinha, nem uma só pintinha no rosto e ambas gostamos deixar as pessoas enternecidos antes de adormecerem, já que nem sempre durante o dia isso lhes é possível. Coisas da vida!… Não tenho razão?
-Claro que tens razão, menina Lua - como eu!...

 

DIFERENTE

Beberia das mesmas fontes
de águas lavadas
e de outras também.
Cruzaria os mesmos caminhos
alguns de pó, outros de pedra
e muitos mais, longos, de asfalto
que nunca soube onde chegavam.
Olharia as mesmas montanhas
o mesmo mar, as mesmas ondas
à mesma hora, ou sem relógio.
Amaria da mesma forma
quem amei e quis amar
sabendo-o bem, ou nem sabendo.
Sentar-me-ia no mesmo lugar
à espera do mesmo olhar
do mesmo abraço, do mesmo cheiro;
sonhando sempre, quando acordado.
Voltaria a procurar-me, a inventar-me…
Isto, faria igual, do mesmo jeito.
O resto, faria tudo diferente.