Quero-te devagar com mãos de seda toque de embalar boca de amêndoa lábios de sede e beber-te e saborear-te sem tempo e sem reservas… Depois, em sofreguidão no acender dos olhos no transpirar das mãos no desespero do corpo ao desnorte do desejo quero amar-te intensamente até ao verter das fontes
Chateia-me o custo abusivo do estacionamento pré-pago.
Chateiam-me os arrumadores de carros, desesperados por uma moeda de cinquenta cêntimos.
Chateia-me ver a fome estampada no rosto de jovens desacreditados do presente e no futuro.
Chateiam-me as filas no McDonald’s, para um hamburger e um copo com mais gelo que bebida.
Chateia-me o Pai Natal com óculos sem lentes e barbas brancas de algodão.
Chateiam-me as canções de Natal, monocórdicas e repetidas no mês de dezembro.
Chateia-me caminhar por uma estrada sem luz.
Chateiam-me as albufeiras a prender e a impedir as águas dos rios de descer e os peixes de subir.
Chateia-me o frio e os dias consecutivos de chuva.
Chateiam-me as picadas dos insectos e as axilas transpiradas no verão.
Chateia-me o aprendiz de ditador, saudoso das medidas absolutistas e do mofo do manto púrpura.
Chateiam-me os excessos da democracia, quando esta fabrica demagogos e desonestos.
Chateia-me ouvir sempre “sim, tem razão, concordo, excelente”, quando se ficou aquém da perfeição.
Chateiam-me as pessoas ingratas, as curiosas demais e as que procuram pequenas fendas nas paredes dos outros, quando as suas paredes caíram no último dia de vento fraco.
Chateia-me o cheiro a chulé e os sapatos de má qualidade, comprado por uma bagatela.
Chateiam-me as meias de lã duvidosa, vendidas ao kilo nas lojas com cheio a plástico, ou entre os gritos de vendedores ambulantes nas romarias.
Chateia-me ouvir um acorde de guitarra desafinado.
Chateiam-me os programas de televisão, que fabricam celebridades que cantam e dançam e os abandonam depois acocorados nos seus sonhos.
Chateia-me o ranking das escolas, para aferir sucessos duvidosos, pondo em confronto titânico o ensino público e privado, como se afirmando "a minha gaita toca melhor do que a tua".
Chateiam-me os exames nacionais, que exigem às crianças esforço maior de estudo, roubando-lhes o tempo de brincar.
Chateia-me ter de dizer num texto tanta coisa que me chateia.
Chateiam-me as horas em não sei dizer nada, por nada me chatear.
Na areia molhada, na praia vazia, vai gravando o som do mar a cada onda que se lhe quebra por perto e se desfaz em espuma branca a seus pés. É outono, ausente de azul, cinzento, fim da manhã e Sheila insiste em permanecer ali, sem pressa e sem razão para a ter. Ninguém espera por ela e ela nunca esperou por ninguém. Está ali, ela apenas, despreocupada, sem relógio no pulso e sem relógios no céu. Está ali, só, e quer ficar assim naquela praia deserta, pisando a areia fria, olhando e gravando as ondas e o mar. Descalça, de calças içadas aos joelhos, sente o fresco no corpo, mantendo a febre no peito. Levantou-se cedo, madrugada ainda, seguiu a estrada do oeste e escolheu aquele lugar para acordar de si naquele dia. E, aquele dia, naquela manhã desprovida de azul e de sol, é tudo o que quer para si. Sheila quer sempre pouco, do pouco que aprendeu a querer e lhe souberam dar. De flor tatuada, em dias que o tempo engoliu as horas, quando achada perdida, Sheila insiste em querer encontrar-se, como se a coragem a pedir-lhe. Obrigaram-na, feriram-lhe o ventre, abafaram-na, profanaram-na e ela nunca soube aprender a fugir e esconder-se. Guarda memórias, disfarça mágoas, sente a dor a cada adormecer e ainda não rasgou folha alguma do diário que lhe relatam momentos; poucos de silêncio e conforto, muitos de grito e cólera. Passados tantos anos, tantas noites silenciadas entre paredes sem cor, esta mulher, feita mulher sem tempo há tanto tempo, criança ainda, sabe hoje, muito bem, de cada gesto que a não deixou adormecer, de cada dor que expulsou num grito, de cada momento que a não deixou crescer criança, brincar como criança. Sheila sabe bem de todas as palavras e de todos os nomes e de todas os momentos que o seu diário guarda e que tem nas mãos, ali, na praia vazia, de areia fria, de onde vai olhando e gravando as ondas e o mar. Passa já do meio dia e a neblina começa a levantar na praia e na praia fica apenas o cinzento, o frio, gaivotas soltas ao longe e ela, com uma vontade enorme de soltar das mãos o diário que segura. Sabe bem o que diz ele. Sabe muito bem tudo o que dela está nele, e pesa-lhe agora mais do que nunca! De calças içadas aos joelhos, descalça, Sheila caminha pela areia fria até à água, às ondas, ao mar todo e solta nele o pedaço maior e mais escuro de si...
Quebrei no teu peito um glaciar de silêncio. Poisei-me na noite e fiquei no teu colo à espera, a querer saber de mim. Falei-te intimamente soletrando cada palavra rasgada à garganta de coisas minhas, sérias enormidades do coração. Falei-te de tantas coisas que nunca ousara… Abri o livro na página que interrompera quando um dia
ao fechar dos olhos acomodado num peito morno me deixei adormecer...