COVIDE 20
Atenção!!!
Este é um pouco mais agressivo, mas nada de alarmes, só provoca mais uns espirros!
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Atenção!!!
Este é um pouco mais agressivo, mas nada de alarmes, só provoca mais uns espirros!
O senhor Austrincliniano era um homem prudente. Sabia-o toda a gente da sua região. Nunca dava um passo sem que previamente o medisse. Foi assim que o conheceram desde sempre. Diziam que falava pouco, com medo de entrelaçar as cordas vocais. Mesmo assim, sempre foi respeitado e considerado por todos. Chegou a ser responsável político na sua terra.
Este homem, de nome esquisito, vestia camisa de meia manga no inverno e gabardina no verão, para não ser apanhado de surpresa por uma mudança repentina do tempo. Justificava este estranho comportamento com a expressão "o diabo não tem sono nem vontade de dormir!” Muita gente chegou a censurá-lo por atitudes tais, mas ele fazia-se surdo a tudo quanto contrariava a sua razão. Nunca foi pessoa de dar ouvidos a conselhos e reparos. Em tempos, teve desavenças com o padre da terra, só por este lhe lembrar - numa alusão à sua pouca dedicação às coisas da paróquia - que as telhas da Igreja não lhe cairiam na cabeça. Levou de tal forma a peito o reparo irónico que imediatamente pediu audiência ao bispo da diocese; queria a transferência do sacerdote.
No seu modo de vida, vendia galinhas poedeiras, criadas a grão e côdeas, para que pudessem chocar excelentes pintainhos. Ninguém poderia dizer que não era um homem sério. Chegou também a vender galos cantadores, ovos de duas gemas e pegas de trave cortada (para que falassem). Neste caso, ele próprio fazia a cirurgia. Nas horas vagas capava porcos e cortava cabelos, mas apenas àqueles a quem considerava; sempre foi amigo do seu amigo. Quando as notícias da televisão o alertaram de que as vacas andavam a padecer de loucura (vacas loucas) e as galinhas começavam a constipar (gripe das aves) e era, por isso, perigoso comer a sua carne, ele, respeitando os seus cuidados e precauções, imediatamente deixou de dormir com a mulher (que passava o dia no galinheiro) e de comer carne de vaca.
Este respeitado senhor morreu repentinamente. Toda a gente se surpreendeu com o seu prematuro desaparecimento. Comentavam e tentavam adivinhar a causa que o liquidou. Na autópsia verificou-se que tinha comido umas iscas de fígado com cirrose, dum porco de sua criação.
Nunca, com nos tempos de hoje, houve tanto toque nas relações humanas:
Quando se toca num teclado para se comunicar com alguém.
Quando toca o telefone móvel e nele se toca para atender.
Quando toca o sinal sms para anunciar nova mensagem e se toca no ecran para ler e imediatamente se volta tocar nele para pela mesma via responder.
Quando se toca numa coisa ou noutra para se tocar no sentimento de alguém.
Se não se tocar em mais nada, já se tocou em muito vidro e muita coisa…
No passado não acontecia tanto toque assim.
Ah, presente maravilhoso, futuro promissor, porque tão cheio de toques, tão envolvido por toques e de tanta emoção nos toques!
Mostro de mim quase nada
e nada já sou quem sou
Verto dos bolsos os versos
que guardo dos meus delírios
se me inventei ao luar
nas noites mansas do estio
Guardo os sabores temperados
em favos de mel e sal
nas fendas no céu da boca
quando à sede me rendi
Mostro de mim quase nada
e nada já sou quem sou
Sei das cores das flores do campo
Sei das dores das folhas no outono
encharcadas de saudade
quando se vão sem querer
Mostro as minhas mãos rasgadas
nas pedras ásperas que abracei
e guardo flores secas prensadas
dos jardins que não reguei
Mostro de mim quase nada
e nada já sou quem sou
Que me importa se enche ribeiras e rios,
se as águas se perdem no mar.
Que me importa se a chuva cai
como fios retalhos de seda,
insinuando valsas, quando soprada pelo vento,
se mesmo assim me humedece o rosto
as mãos e os pés,
chamando a tosse, a gripe e as constipações.
Que me importa saber se o sol não fugiu para longe,
se se esconde por detrás das nuvens
e não aquece sequer uma flor.
Que me importa se a chuva é precisa,
se o frio é preciso,
se afinal me consigo aquecer e resguardar,
mesmo que aprisionado, com uma lareira acesa,
à custa de uma árvore decepada.
Estou cansado de ti, inverno;
vai dar uma volta, antecipa-te
e deixa no teu lugar a primavera.
Ninguém pediu para nascer; decidiram, ou obrigaram a nascer.
Não pode haver também ninguém que impeça "the decision of the last day".
Há uma hora que temos, e não nos podem travar, de sermos donos de nós e da nossa dignidade...
Dogmas não cessam sofrimentos.
Leio, de Carlos Drummond de Andrade
Negra, como a noite.
Branco, como a paz.
Rubro, como o vinho.
E há outras cores mais,
mesmo que indefinidas,
para colorirem a vida.